quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Epílogo


Eu emagreci bastante, mesmo com Marcos me dizendo que não precisava. Não tinha voltado a ficar a panicat que era Silvia, mas me achei linda no vestido em que fui madrinha de Marília. Ela ficou surpresa de eu ter ido com Marcos, mas no fim adorou a ideia.

As meninas, Ju e Pri, adoraram me ter de volta, Pri até começou a fazer aulas de pintura. Até mãe delas passou a me tratar bem e Maria havia se convencido de que eu havia mudado.

Marília e eu ficamos grávidas quase ao mesmo tempo e torcemos para nossos filhos formarem um casalzinho.

O dia em que meu filho nasceu foi o dia mais feliz da minha vida. Ele se chama Alan e Marília teve uma menina. Quem sabe eles não formem um casal como um dia também fomos.

No primeiro dia de visitas no hospital, apés o meu parto. Ele apareceu. Marcos não deixou ele entrar antes de perguntar pra mim se podia, eu concordei.

Ele entrou acanhado, estava nitidamente mais velho, menos cabelo e mais rugas. Mas ainda se mantinha atlético. Eu segurava meu filho no colo.

“Oi... ele... ele é lindo...” Ele falou sem jeito.

“É sim... obrigada...”

“Eu... eu...” Ele tentou falar, eu o cortei.

“Pode vir ver mais de perto... ele tem o mesmo nome que você...” Ele se aproximou e eu vi que seus olhos se enchiam de água.

“Desculpa... eu não tinha o direito de ter feito... Meu deus... eu sou um monstro, eu roubei... eu...” Ele desabou em choro.

Marcos ainda estava dentro do quarto, apreensivo, me protegendo como sempre.

“Não precisa ficar assim, isso tudo é passado... eu... eu sou muito feliz...” Eu disse sincera e olhei para a carinha do meu filho. "Eu sou realmente muito feliz..."

“Você é uma Silvia muito melhor que eu e eu também não sou o melhor Alan do mundo...” Ele choramingou.

“Eu não sou a Silvia e você não precisa ser o Alan.” Eu disse serena.

“É, você tem razão, eu... eu... eu só queria me desculpar, eu não tinha coragem de olhar pra vocês... eu... eu também queria vê-lo...” Ele disse limpando o rosto.

“Tudo bem, você pode vê-lo quando quiser.”

“Ta bom, obrigado e... bem, tchau, eu vou indo. Obrigado por... por não ter raiva...” Ele disse se retirando sobre os olhares vigiadores do meu marido.

Sentindo o calorzinho do meu filho em meus braços, olhando para Marcos ali me protegendo, me amando eu disse quase rindo. "Eu não tenho raiva, acho que..." Eu ri de novo. "Acho que sinto gratidão..."

Até hoje, ele nunca mais voltou. Alan tem dois anos e eu estou grávida de novo. Marília e Thiago fazem tudo com a gente e as crianças. Somos muito amigos.

Marcos e eu somos um casal apaixonado, acho que éramos almas gêmeas desde o início, se é que isso existe. Eu ainda lembro um pouco de como era ser homem e confesso que quando fico naqueles dias ainda almadiçôo a verdadeira Silvia, mas passa rápido, é só ver o sorriso do meu filho ou ganhar um beijo de Marcos pra voltar a adorar ser a mulher que sou.

UMA PROFUNDA TROCA DE CASAIS CAP. 13


Depois de seis meses Marília começou a sair com outro cara. Ela foi honesta, me contou antes mesmo de aceitar o primeiro encontro. Eu morri de ciúmes, mas não a impedi, ela tinha todo direito. Só não agüentei ficar tão próximo, morando na mesma casa. Os meus quadros vendiam como água e não foi difícil alugar meu próprio apartamento três meses depois, quando Marília já começava a namorar mais sério.

Mais ou menos na época do aniversário de eu ter virado Silvia, eu já estava me acostumando bem a ser mulher. Mas estava ainda mais gordinha e mantinha o cabelo curto e minha vida social era quase nula. 

Eu tentava sair e tentei por umas vezes ir em bares exclusivos para lésbicas. Cheguei a ir pra cama com outras garotas, mas definitivamente, por mais que aquilo machucasse minha masculinidade de outrora, eu não era homossexual. Sexo com as mulheres não era ruim, mas eu sentia falta do que Marcos havia me proporcionado. Só que eu não queria admitir aquilo de maneira nenhuma.

A arte tinha virado minha vida outra vez, só que talvez por ela ter passado a receber foco total ou talvez porque as agruras de um homem preso num corpo de mulher tenha sido um combustível e tanto, eu explodi. Passei a expor em outros países. Europa, EUA e até na Ásia. Eu passei a viajar muito e fui acostumando com minha vida solitária.

Quando fiz vinte e oito anos de novo, um pouco menos de dois anos depois da fatídica viagem, a comemoração foi com Marília e seu noivo. Ela ainda era a única pessoa com quem eu falava regularmente e eu já tinha me forçado a agüentar que ela agora tinha outro homem. Thiago, um cara, que preciso admitir, gente fina e que nitidamente gostava muito dela. Obviamente, pra ele eu era apenas a melhor amiga, não um ex marido.

O jantar tinha sido ótimo, e eu fiquei genuinamente feliz, quando eles me surpreenderam me chamando para ser madrinha do casamento deles. Eu seria madrinha do casamento da minha ex-mulher, aquilo parecia absurdo, mas acho que eu realmente havia superado minha fase depressiva, porque não perdi nenhuma noite de sono por causa daquilo. O que passou a me incomodar depois daquele dia, foi a chegada de um outro sentimento. Acho que ao vê-los juntos, trocando caricias, fazendo planos, trouxe uma melancolia, uma certa tristeza pra minha vida de novo. Acho que eu estava enjoando de ser sozinho. 

Decidi então dar uma chance pra minha heterossexualidade feminina. Eu estava bem gordinha naquela época, então me matriculei numa academia e comecei a comer melhor.

O primeiro convite para um encontro veio justamente da academia, um outro aluno que também não era do clube dos sarados. Tudo começou com uma piada na esteira sobre, exatamente, não sermos o estereótipo das pessoas do local. Depois disso conversávamos diariamente. Ele trabalhava com tecnologia e malhava na hora do almoço, a hora que eu acordava e começava o meu dia.

André era bastante engraçado e me deixou a vontade o suficiente para um dia aceitar jantar com ele. Lá estava eu, há mais de dois anos como mulher, tendo meu primeiro encontro com um homem. Tive que ligar pra Marília um tanto envergonhado pra pedir ajuda. Ela foi tão solícita que a estranheza da situação não durou nada.

Escolhemos minha roupa juntas e ela me maquiou, mas dessa vez me ensinando, para que eu fizesse sozinho na próxima vez.

As nove em ponto, o interfone tocou e eu desci, arrumado. De saia preta e blusa folgada roxa. De meia calça e sapatos de salto médio. Com pulseiras, brincos e até uma tiara no cabelo. De unhas pintadas de vermelho e maquiagem um pouco mais saliente.

André não parou de me elogiar e me levou num ótimo restaurante, depois fomos para um barzinho, onde ele tentou me beijar e eu deixei. Foi quando algo se acendeu em mim.

 Eu estava me sentindo bem, eu estava feliz, eu era uma mulher feliz. Eu tinha finalmente aceitado tudo aquilo. Mas aquele não era o beijo que eu queria. Eu queria aquele beijo que colava em mim como um adesivo, eu queria aquele frio no estômago.

Inventei que tinha que viajar cedo no dia seguinte e André me deixou em casa pouco mais de uma da manhã. Eu aproveitei meu ímpeto, chamei um taxi e fui pra lá. Sem telefonar, sem avisar. Apenas apareci. Eu tinha que fazer aquilo e toquei a campainha com o coração saindo pela boca.

 Ele mesmo atendeu. De shorts e camiseta. Meu estômago correspondeu e ficou gelado no mesmo instante. Ele fez uma cara de surpreso e sorriu. Eu derreti, dessa vez, adorando ficar derretido.

Eu avancei e enfiei um beijo na boca dele. O calor veio, o prazer veio, tudo veio. Era exatamente aquele beijo que eu queria. Ele correspondeu, mas me afastou.

“Calma... espera...” Ele disse e eu congelei. Milhões de coisas passaram em minha cabeça, ele podia estar namorando, ele podia estar até mesmo casado de novo, ele podia estar me achando gorda, feia... Claro que ele não ia me querer. Me arrependi de tudo e disse.

“Marcos... desculpa... eu... você deve ter uma nova namorada, eu to gorda... feia... desculpa, eu vou embora...”

A resposta dele foi me agarrar de novo e me dar o melhor beijo da minha vida, eu fiquei completamente sem ar, mas eu não precisava mais dele, porque eu tinha ido para outro plano astral.

Quando acabamos ele disse. “Eu só preciso saber se você vai ficar...”

“Eu vou...” Eu disse extremamente feliz.

UMA PROFUNDA TROCA DE CASAIS CAP. 12



Dois meses depois, eu não havia colocado o rosto para fora de casa. Mas havia virado o rei do delivery, tinha conseguido engordar o corpo de Silvia e tinha quadros suficientes para encher uma galeria.

E foi o que aconteceu, devido aos contatos de Marília, a primeira galeria que viu as fotos se interessou e pela primeira vez em muito tempo eu senti algo que chegava perto da felicidade.

O novo sentimento foi tão inusitado que até topei participar do que ela chamou de ‘dia de princesa’ no dia da minha vernissage.

“Acorda, vamos, você prometeu que se você expusesse, você iria se arrumar para a vernissage...”

Abri os olhos e vi que ainda eram nove da manhã. “Marília, o evento começa só as sete da noite, me deixa dormir mais vai.”

“Não, não... a gente tem que comprar roupas, tem salão de beleza marcado, cabelereiro.”

Naquele momento eu quase me arrependi de toda a promessa, mas a verdade é que todo aquele tempo pintando havia me feito aceitar mais as coisas. Eu seria mulher para o resto da vida. Não é que eu iria voltar a usar as mini roupas de Silvia, mas eu teria que me acostumar a ser do sexo feminino. A exposição marcaria o nascimento de outra pessoa, eu não era mais a antiga Silvia e eu não era mais o Alan. Eu estava renascendo na pele de uma mulher baixinha começando a ficar meio gordinha.

Não é que eu estivesse com barriga, minha cintura estava sim definitivamente mais larga, com pneuzinhos começando a ficar salientes, minha circunferência tinha mesmo aumentado e meus peitos também pareciam maiores. Agora, minha bunda, essa sim me assustou quando prestei atenção nela de novo. Estava enorme, assim como minhas coxas. Realmente a gordura da mulher vai para lugares diferentes. Eu acho que eu parecia uma coxinha peituda, mas como eu não estava nenhum pouco interessado em ser a gostosa do pedaço, nem me incomodei.

Fazia muito tempo que eu não me vestia de mulher, então foi meio estranho voltar a colocar calcinha e sutiã.

Marilia tinha tirado minhas novas medidas durante a semana e acabou me comprando algumas roupas.

Acabei vestindo uma calça jeans maior do que as da verdadeira Silvia, já que agora eu tinha aquela enorme bunda pra lidar. Uma camiseta básica bem larga e um ténis preto completavam meu novo look. Eu não era mais a loira gostosona e sexy que Silvia era. Eu estava mais pra uma pequena e redonda sapatona bunduda. Não achei tão ruim, pelo menos tinha um pouco de masculinidade.

Eu não estava extremamente animado com o tal dia de princesa, mas eu havia prometido que não reclamaria de nada pra Marilia, e afinal de contas, ela teve que ser uma santa por todos esses meses. Eu devia isso a ela.

Começamos o dia no salão de beleza onde passei por alguns processos doloridos e um tanto humilhantes. Começaram arrancando pelos da minha sobrancelha, enquanto mexiam nos meus pés e mãos. Lixas, alicates e esmaltes eram as ferramentas. Também passaram uma série de coisas no meu rosto e me deixaram com uma máscara melequenta na cara por bons minutos.

Depois foi a vez do cabelo, aceitei ter um estilo mais feminino, mas sem abrir mão de ser curto. Quando já íamos começar o corte o afetado cabeleireiro perguntou se eu não desejaria pintar. Então tomei uma decisão ainda mais radical. Resolvi virar morena. Marília adorou a ideia e apesar do processo ter sido extremamente chato, quando me vi de novo, após a tintura, após o corte, após secadores, mousses e penteados. Eu adorei, e eu sabia bem o por quê, eu estava cada vez mais diferente da Silvia. Tudo bem, minhas unhas do pé e da mão estavam pintadas de um vermelho queimado bem escuro, eu estava usando calcinha e meus seios estavam presos dentro de um sutiã. Só que eu já estava mais gordinha, meu rosto estava mais cheinhinho, eu usava roupas bem mais conservadoras e básicas e tinha cabelos curtos morenos. Eu não era mais Silvia.

Quando acabaram comigo, já estava na hora do almoço. Nos sentamos para comer e eu pedi o maior hambúrguer da casa, apesar das tentativas de bronca de Marília. Eu não estava nem ligando, ser atraente para alguém, definitivamente, não estava nos meus planos.

Acho que quem nos via ali, devia achar que éramos um casal de lésbicas, porque após tanto tempo de frieza e agressividade, aquele dia eu estava mais aberto a receber e dar carinho e não é que nos beijávamos loucamente, mas nossas mãos estavam voltando a se tocar e nossos olhares ficavam mais ternos.

Foram muitas lojas e muitas discussões. Eu não queria abrir mão de usar calças e Marília queria me enfiar num vestido e saltos alto. Do vestido eu não escapei, acabamos concordando em um preto básico, de manga curta, sem decote, que chegava em meus joelhos e não era justo. Os sapatos foram de salto baixo e grosso, pretos. Para completar o look, ignorando minhas reclamações, meia calça preta, uma pulseira um pouco mais grossa do que eu gostaria, um colar fininho e pequenos brincos, tudo prata.

Fora isso acabamos comprando algumas roupas para compor meu guarda roupa que não fossem velhas calças de moleton e camisetas folgadas. Marília estava encarando aquilo como um vernissage não apenas da minha arte, mas da minha nova persona.

Chegamos em casa perto do fim da tarde, eu estava exausto, mas o dia mal havia começado pra mim. Tomei banho, já bem mais acostumado com o meu corpo feminino, dessa vez com extremo cuidado não molhar meu novo cabelo. Marília disse que seria difícil repetir o que o cabeleireiro havia feito.

Saí do banho e comemos alguma coisa leve para enganar o estômago, sabíamos que a janta mesmo só viria bem mais tarde.

Na hora de me vestir, Marília mais uma vez me ajudou, ela havia comprado um conjunto de lingerie preta que eu coloquei primeiro, depois ela me ajudou com a meia calça, algo que nem fingindo ser Silvia eu havia usado. Depois o vestido e as jóias. Quando eu achei que estava pronto, ela me mandou sentar na penteadeira dela, dei uma resmungada, mas ela prometeu não exagerar. Acabei com um pouco de sombra, rimel, lápis nos olhos, um pouco de blush e batom. Tudo em tons discretos. Preciso confessar que realmente havia ficado bom.

Quando me olhei pronto no espelho, eu fiquei satisfeito. Eu não era mais Alan, eu não era mais homem. Eu sabia. Eu era sim do sexo feminino, mas eu também não era mais Silvia, eu era uma mulher nova, uma mulher bonita, começando a passar do peso, mas definitivamente bonita e prestes a expor numa galeria de arte. Eu me sentia bem novamente, depois de tanto tempo.

Chegamos mais cedo e ficamos esperando um pouco os convidados chegarem, e conforme eles chegavam eu tinha que relembrar como ter tratos sociais depois de tanto tempo recluso. Pior que isso, eu tinha que me portar como uma mulher, dessa vez não como Silvia, mas como eu mesma. Uma nova mulher.

Eu acho que estava me saindo muito bem, recebendo muitos elogios pelo trabalho, o que fazia tudo ficar mais fácil, e até me divertia com as conversas. Até que eu vejo ele entrar, meu estômago acho que me avisou antes mesmo dos meus olhos captarem direito. A mesma maldita sensação, o friozinho, a apreensão. Era Marcos que entrava, sorrindo aquele maldito sorriso.

Subitamente, comecei a me sentir gordo, odiei o tamanho da minha bunda. Eu queria me esconder. Eu não queria vê-lo, eu queria ter comido melhor, eu não queria estar gordinha e bunduda. Eu me odiei por me sentir daquele jeito, mas eu me sentia. O que ele tinha que mexia tanto comigo? Por que ele me fazia me sentir uma garotinha de colegial apaixonadinha?

Vi ele parando para conversar com Marília. A conversa da qual eu estava participando havia virado murmúrios distantes. Vi minha esposa apontar em minha direção e ele veio se aproximando. Meu coração acelerava.

“Olá...” Ele disse com aquele olhar que pra não fugir do comum me derreteu.

“Oi...” Eu disse timidamente, mas tentando manter a compostura. Percebi até que institivamente eu dava uma encolhida na barriga.

Ele se inclinou para me cumprimentar com um beijo no rosto, eu estendi minha mão, depois voltei, ele também. Daí eu me inclinei para aceitar o beijo, ele já havia retornado e quando ele voltou eu havia baixado a cabeça constrangido e quando levante bati em seu queixo. Enfim, tivemos um daqueles horrorosos momentos extremamente constrangedores onde duas pessoas não sabem o que fazer.

Ele riu, me segurou pelos ombros e finalmente, nossos rostos se tocaram. Eu senti a mesma queimação de antes e meu coração quase pulou pela boca.

“Parabéns, ainda não vi com calma, mas seu trabalho parece incrível...” Ele disse.

“Obrigada.” Eu disse sorrindo bobamente, eu me envergonhava tanto de ficar tão feliz porque ele havia gostado dos meus quadros.

“Você ta diferente... o cabelo...”

E gorda e horrorosa e bunduda. Eram os pensamentos femininos que rodavam minha cabeça aquela hora. Eu queria chorar ou me esconder. Mas respirei fundo e disse: “Pois é... eu resolvi mudar um pouco. E bom, to virando uma bolinha...” Tentei fazer piada da situação.

“Pois pra mim você continua... ou melhor, está ainda mais linda...” Ele me cantou, o desgraçado estava me cantando de novo.

“Marcos...” Eu o adverti. “Eu gostei que você veio, de verdade... mas não. Isso não está certo.”

“Eu vim pra te ver, eu precisava falar com você.” O olhar dele me fuzilava e me enchia de arrepios.

“Pode falar...” Eu disse meio sem respiração.

“Aqui não...”

“Marcos, eu não posso sair daqui, é meu vernissage... e além do mais... eu não sou... você sabe, eu não sou ela.”

“Eu sei bem disso, vamos fazer assim, a gente vai até aquele último quadro ali e você finge que está me explicando e eu falo o que tenho que falar e vou embora, pode ser?”

“Marcos...”

“Cinco minutos e eu vou embora.”

Eu respirei fundo e soltei um suspiro de vencido. Andamos até a frente do quadro. Um que tinha um fundo rosa e um monte de respingos pretos que formavam grafismos interessantes.

Ele começou imediatamente. “Eu não consigo tirar você da cabeça, eu não parei de pensar em você um minuto durante todos esses meses... Eu... Eu to apaixonado por você... eu lutei contra, acredite... mas...”

Meu coração quase explodia, eu suava, mas falei o mais sobriamente que consegui. “Você ta enganado Marcos, você ama a Silvia, eu não sou ela, sei que deve ser difícil, eu sei mesmo... Mas eu não sou ela...”

“Eu disse que sei bem disso, eu não amo a Silvia, eu amo essa mulher nova que entrou na minha vida naquela semana...” Ele puxou meu ombros e me fez encará-lo, eu acho que quase desmaiei. “Eu amo você...” Ele disse e, infelizmente, eu juro que eu queria que ele tivesse me beijado ali mesmo, a força... mas o que eu fiz foi me desvencilhar dele e dizer. “Seus cinco minutos acabaram...”

Saí andando com minhas pernas completamente bambas, eu mal conseguia respirar e algumas lágrimas caíram dos meus olhos. Fui diretamente ao banheiro e tentei me recompor. Quando voltei ele não estava mais lá.

Passei o resto da vernissage me entupindo de pro-seco e quando fui jantar com Marília eu já estava bem bêbado. Ela achou que era euforia pelo sucesso, mas a verdade é que eu não conseguia parar de pensar no Marcos, o álcool parecia ser minha melhor saída.

Durante o jantar ela chegou a dizer que tinha achado legal ele ter ido, eu disfarcei, mas só a menção do nome dele me dava calafrios.

Marília também acabou me acompanhando nos drinks e chegamos em casa cambaleando. Ela me atacou como havia me atacado na viagem. Suas mãos suaves tocando minha pele, seus beijinhos sutis e leves. Ela me colocou na cama com delicadeza e delicadamente me acariciou. Eu tentei entrar no clima, mas mesmo bêbado, eu não conseguia. Tudo parecia xoxo e sem graça, eu sentia falta de mãos maiores de beijos mais seguros. Eu sentia falta de Marcos. O desgraçado havia me acostumado mal, eu queria mais que aquilo.

Marília se esforçava, tirou minha meia calça, minha calcinha. Ela me lambia, me apertava. Eu não sentia quase nada. Aquilo me deixava com raiva de mim mesmo, envergonhado. Ela percebeu.

“Você... você não ta no clima?” Ela perguntou meio aflita.

Eu balancei a cabeça positivamente e não agüentei, comecei a chorar. Ela me abraçou.

“Não tem problema...” Ela me acariciava e eu não sentia nada perto de tesão e chorava mais.

“Shhhh...” Ela tentava me acalmar. “Calma, não tem problema...”

Dormimos naquela dinâmica, dela me acariciando e eu chorando. Ambos sabendo que tinha problema sim, que nosso casamento tinha acabado, que tínhamos virado... amigas.

UMA PROFUNDA TROCA DE CASAIS CAP. 11


Quando acordei eu me sentia um perfeito paradoxo. Minha cabeça doía muito, meu corpo também doía, mas ao mesmo tempo eu me sentia leve, satisfeito. Percebi que Marília já tinha levantado da cama, abri os olhos com dificuldade e me senti confuso, aquele quarto... Então coloquei as mãos no meu tórax para confirmar o que eu já estava desconfiando. Seios. Eu era Silvia, claro. Minha memória foi então voltando aos poucos. A troca, o fim das férias, os dias na casa de Marcos, as aventuras com as meninas, o escândalo com a empregada, isso me fez até rir.

Me sentei devagar na cama, o quarto girava. Era ressaca, eu tinha enchido a cara na noite anterior? Sim, me lembrei, enchei a cara com Marcos como dois caras, falamos de futebol, de carros... espera. Depois as coisas mudaram... Ah meu deus! O beijo... os beijos, a pista de dança... Puta que o pariu! Eu estava nu. Eu estava completamente pelado na cama. Abri um pouco as pernas e senti algo ali, meio grudando, coloquei a mão ali... minha espinha gelou. Eu sabia bem o que era aquilo: sêmen, esperma... Porra! Eu tinha porra de outro cara entre as minhas pernas. Aí os flashes de memória vieram com força. Marcos me agarrando, Marcos chupando meus seios, Marcos lambendo minha vagina, Marcos me comendo, Marcos me fodendo, Marcos enfiando seu pinto em mim e eu, eu abrindo minhas pernas... gemendo... gostando.

Saltei da cama e quase caí, corri para o banheiro e olhei para a vadia no espelho. “Sua puta!” Eu disse e entrei no chuveiro. Abri minhas pernas e deixei a água cair ali, foi o banho menos erótico que tive desde que havia trocado de corpo. Eu só queria tirar aquilo de mim, esfreguei sabonete, esfreguei minha mão de unhas vermelhas. Fiquei um bom tempo ali garantindo que aquela meleca toda saísse de mim.

Voltei para o quarto e encontrei um bilhete no criado mudo.

Bom dia,

Tive que ir trabalhar, não quis te acordar. Pedi para Maria preparar um café reforçado pra você. Passo em casa para te pegar e irmos ao aeroporto. Não sei bem o que dizer dessa situação estranha. Primeiro desculpe, estava muito bêbado, estávamos muito bêbado. Minha intenção nunca foi desrespeitar você de nenhuma maneira, mas a verdade é que (sei que você vai me odiar por isso) eu tive uma excelente noite, valeu toda dor de cabeça que estou sentindo agora.

Tenho só uma coisa chata para te pedir. Como falei, estávamos bêbados e, você sabe, não usamos proteção. Silvia toma pílulas, não sei se você manteve o hábito. Se não manteve, eu deixei uma receita dentro da gaveta para pílula do dia seguinte. Desculpe estar falando disso, mas acho que é importante. Ela deve ser tomada em até 72 horas, temos tempo.

Um Beijo,

Marcos

PS: Não fique bravo ou estranho comigo, se você quiser a gente finge que nada aconteceu.

Eu não sei como não desmaiei ali mesmo. Eu suava frio, eu fiquei uns dez minutos no mínimo com aquele papel na mão. Pílula do dia seguinte? Eu era um homem, um macho, um cara! E não devia ter que me preocupar com pílula anticoncepcional. Por que o desgraçado não usou camisinha? Droga! Por que eu não pedi pela camisinha? Porra! Por que eu fui dar pra ele?

Excelente noite? Um beijo? Ele acha que eu sou a mulherzinha dele agora? Não fique estranho comigo? Que filho da puta, ele me comeu... Ele gozou dentro de mim, me deixou todo melado... e também me fez gozar, um orgasmo enorme... e o jeito que ele me pegava... Eu balancei a cabeça afastando os pensamentos estranhos. Só tinha uma palavra boa naquele bilhete. Aeroporto. Tudo ia acabar, eu ia voltar a ser homem e tentar esquecer tudo isso. Ah como eu iria transar com Ana, com o meu pinto! Com o meu pinto entrando e saindo de alguém!

Vesti a droga de uma calcinha, um sutiã, o jeans justo, uma camiseta roxa e as sapatilhas que eram confortáveis. Encontrei Maria na cozinha com o meu café pronto. Comi pouco, mesmo após o banho, a ressaca ainda tomava conta de mim. Ela me tratou friamente, o que não me incomodou nenhum pouco, já que eu estava de ressaca e extremamente mau humorado.

Peguei minha bolsa, as chaves do carro, a receita médica e saí para procurar uma farmácia ainda não acreditando que eu estava em busca de uma pílula do dia seguinte para não engravidar. Porque, afinal de contas, na noite anterior, eu estava bêbado, dei para um cara e como fomos levados pela paixão do momento, não usamos camisinha e ele despejou a sementinha dele dentro de mim. Que lindo!

Parei na primeira farmácia que vi, desci do carro já envergonhado. Parei no balcão e dei a receita para a atendente, tenho certeza que ela abriu um sorrizinho sacana. Pensando: “Essa aí é uma vadia...”

Paguei pela maldita pílula e voltei pra casa desconsolado. Tomei o humilhante remédio e me tranquei no quarto.

Acordei com batidas na porta e um chamado para o almoço. Era Maria e sim, eu ainda era Silvia e ainda podia estar grávida. Pelo menos a ressaca havia dado uma trégua. Comi em silêncio e tomei litros de suco de laranja.

Passei o resto do dia zapeando a TV, sem prestar atenção direito em nada, eu não conseguia me distrair. Tudo bem, eu estava no corpo de uma mulher, eu tinha desejos heterossexuais de uma mulher, mas até aí pra descambar numa transa com outro cara, é demais. Pior que isso, tinha sido bom, tinha sido melhor que quando fiz sexo lésbico com a minha esposa. Meu deus, o que eu vou dizer pra Marília: “Oi amor, lembra que você deu pro meu corpo com uma mulher dentro, então, eu me vinguei, eu dei dentro do corpo dela também e foi uma delícia. Você me perdoa né?”

Nada, eu não poderia dizer nada e tinha que fazer Marcos prometer o mesmo. Por falar nele, ele chegou perto das sete da noite. Entrou no quarto de mansinho, a porcaria do frio no estomago voltou como um coice de cavalo.

“Oi...” Ele disse meio sorrindo.

“Oi...” Eu disse sem coragem de olhar pra ele.

“Você... você leu o bilhete... você...”

“Sim, tomei aquela porcaria... e sim eu quero que a gente finja que nada aconteceu. Isso tem que ficar apenas entre nós... por favor...”

“Tudo bem.” Ele disse seguro. “Sem problemas, não falarei mais sobre o assunto. Aliás, você ta pronta? Temos que ir logo pro aeroporto resolver tudo isso.”

Me levantei, eu não tinha tirado a roupa que fui para a farmácia ainda. A camiseta estava meio amarrotada, troquei por outra e coloquei um cardigan amarelo claro por cima.

O caminho até o aeroporto foi constrangedoramente silencioso. Ele estava relativamente vazio e o vôo delas tinha acabado de pousar. Esperamos por muito tempo e nada delas saírem, meu estômago se embrulhava mais a cada minuto que passava.

De repente, Marília aparece andando lentamente. O rosto dela estava cheio de lágrimas, vermelho e ela mal conseguia tirar o olhar do chão. Corri até ela.

“O que aconteceu? O que foi? Você ta bem?” Perguntei segurando em seus braços com delicadeza. Ela se jogou em um abraço pra cima de mim, eu a abracei. Ela chorava e na minha cabeça eu só me perguntava. Cadê o meu corpo?

“Ele... ela... fugiu...” Ela disse entre soluços, bem perto do meu ouvido.

“Como assim fugiu?” Eu disse me afastando do abraço.

“Ela, sei lá, me drogou, eu só acordei aqui em São Paulo, mas ela não tava no avião,procurei, fiquei esperando todo mundo sair e fui pedir ajuda para a aeromoça, então ela me disse, que ela tinha descido na parada da escala.”

Eu fiquei em choque. “Não acredito!” Marcos disse nervoso, colocando as mãos na cabeça.

“A gente tem que ir atrás dela... Onde foi a escala?” Ele continuou meio desesperado.

“Foi em Salvador...” Marília disse e eu nem conseguia mais falar, então o celular de Marcos tocou, ele atendeu rapidamente.

Marília olhou indagando se era quem a gente queria que fosse, eu nem desviei o olhar. Ele confirmou com a cabeça, Marília se adiantou pra cima dele, ele fez um sinal com a mão para ela esperar.

Toda a cena passava como vultos nos cantos dos meus olhos, Marcos gesticulando e gritando no telefone e Marília apreensiva com as mãos unidas no peito se afastando e se aproximando de Marcos.

Quando tudo acabou eles vieram até mim, eles me chacoalhavam e falavam comigo. Tudo estava nublado e as vozes eram distantes e distorcidas, eles me arrastaram para um banco e me sentaram. Marília acariciava meus cabelos e segurava minhas mãos. Marcos correu atrás de um copo de água e Marília me fez beber.

“O que ela disse?” Eu perguntei depois de um gole. Eles me encararam com pena no olhar. Eu repeti a pergunta. “O que ela disse?”

“Ela disse que não vai voltar, disse que não quer voltar pra esse corpo. Ela realmente fugiu.” Marcos disse pesadamente.

“Mas a gente vai atrás dela, a gente tem que...” Marília disse tentando me animar.

“Sim, claro, agora mesmo e também vou atrás do tal do feiticeiro, quem sabe ele tem outra coisa... Vamos dar um jeito nisso...” Marcos disse seguramente.

Eu só concordei com a cabeça, mas o desânimo era soberano. Eu esperei tanto por aquilo, para voltar a ser eu mesmo e agora isso. Ela rouba o meu corpo. A desgraçada roubou meu corpo.

Marcos nos levou pra casa, não a casa do meu corpo, a minha casa mesmo. Ele queria parar na casa dele para pegarmos roupas, eu neguei. Não queria mais ficar brincando de ser mulher.

Cheguei em casa e fui direto pro quarto. Marcos e Marília ficaram ainda na sala, planejando. Ele foi embora coma promessa de achá-la e de ir atrás do tal Zé Miranda.

Eu tirei toda aquela roupa feminina e coloquei uma cueca boxer que ficou enorme, mas eu nem liguei e uma camiseta cujo comprimento das mangas chegavam nos meus cotovelos e ela ainda cobria toda a cueca folgada. Deitei na cama odiando aquele maldito corpo, odiando tudo.

Fiquei na cama por três dias seguidos, apesar das tentativas de Marília de me animar, eu estava entregue. Mal comia e me levantava apenas para ir ao banheiro, sentado, sentido o liquido sair pela minha maldita vagina.

No quarto dia, Marcos ligou e pediu para nos visitar. Marília me obrigou a tomar banho e eu vesti uma de suas calças de moleton e uma enorme camiseta. Quando Marcos chegou eu quase voltei imediatamente para cama, pois a coisa no estômago ainda estava lá, o desgraçado ainda mexia comigo.

Ele contou que havia encontrado o Zé Miranda e ele realmente afirmou que a estatueta era mágica e que apenas ela desfaria a troca. Precisávamos achar Marília de qualquer jeito, ela tinha meu corpo e a estatueta. Marcos prometeu que estava cuidando disso e me desconcertou com um olhar carinhoso quando se despediu.

Eu me odiei ainda mais e voltei para o meu casulo de depressão. Marília insistia, tentava me tirar do meu estado, mas eu apenas a maltratava. Em um desses dias veio minha primeira menstruação. Acordei um dia com uma dor diferente no estômago, meus seios pareciam ainda maiores. Resmunguei para Marília e não foi difícil interpretar.

A primeira vez que fui no banheiro naquele dia, a prova apareceu. Lá estava eu... menstruando. Pelo menos, isso significava que eu não estava grávido. Mas esse foi o único lado positivo. Eu fiquei ainda mais mau humorado, tanto pelos hormônios, quando pela humilhação que eu sentia de ter que passar por algo tão feminino, usar absorvente higiênico foi a gota de água pra mim. Em um acesso de fúria, tirei pelo menos um pouco da minha feminilidade, destrocei meus longos cabelos com uma tesoura sem ponta.

Quando mais de uma semana se passou, eu estava com o cabelo bem curto, Marília havia ajeitado ele pra mim, e praticamente desnutrido. Em uma de minhas levantadas para ir ao banheiro, desmaiei. Marília me levou para o hospital, onde passei um bom tempo tomando soro. Os médicos me tratavam como se eu fosse uma anoréxica maluca e me recomendaram psiquiatras.

Quando voltamos do hospital, o mundo desmoronou de vez. Tinha uma entrega na portaria. Uma carta de Silvia, pedindo desculpas, mas dizendo pra gente não ir atrás dela. Junto com a carta, uma caixa com a estatueta em pedaços.

Eu seria mulher para o resto da vida, eu seria Silvia pelo resto da vida.

Marcos apareceu naquele dia, também havia recebido notícias de Silvia, eu não quis vê-lo. Mas ele havia trazido documentos e toda vida burocrática de Silvia. Minha vida burocrática, meus documentos.

 Daí pra frente, foi só descida. Pensei várias vezes em me suicidar, mas de alguma maneira, nunca cheguei nem a tentar o ato. Acho que não fazia parte da minha personalidade. Mas minha relação com Marília, essa sim eu estava conseguindo matar, eu a afastava a cada dia.

A verdade é que mesmo que eu não buscasse o ato em si, eu me matava lentamente. Não me alimentava e não vivia. Passava dias apenas deitado. Foi quando, um dia, Marília furiosa, me puxou da cama. Eu era menor que ela e sem comer então, foi fácil para ela me arrastar pro meu atelier. Ela me jogou lá dentro e me trancou.

Foi como ela salvou minha vida. Eu comecei a pintar como se estivesse em transe, eu chorava, eu gritava, eu quebrava coisas. Mas eu pintava, eu estava vivendo novamente.