Quando
acordei eu me sentia um perfeito paradoxo. Minha cabeça doía muito, meu corpo
também doía, mas ao mesmo tempo eu me sentia leve, satisfeito. Percebi que
Marília já tinha levantado da cama, abri os olhos com dificuldade e me senti
confuso, aquele quarto... Então coloquei as mãos no meu tórax para confirmar o
que eu já estava desconfiando. Seios. Eu era Silvia, claro. Minha memória foi
então voltando aos poucos. A troca, o fim das férias, os dias na casa de
Marcos, as aventuras com as meninas, o escândalo com a empregada, isso me fez
até rir.
Me
sentei devagar na cama, o quarto girava. Era ressaca, eu tinha enchido a cara
na noite anterior? Sim, me lembrei, enchei a cara com Marcos como dois caras,
falamos de futebol, de carros... espera. Depois as coisas mudaram... Ah meu
deus! O beijo... os beijos, a pista de dança... Puta que o pariu! Eu estava nu.
Eu estava completamente pelado na cama. Abri um pouco as pernas e senti algo
ali, meio grudando, coloquei a mão ali... minha espinha gelou. Eu sabia bem o
que era aquilo: sêmen, esperma... Porra! Eu tinha porra de outro cara entre as
minhas pernas. Aí os flashes de memória vieram com força. Marcos me agarrando,
Marcos chupando meus seios, Marcos lambendo minha vagina, Marcos me comendo,
Marcos me fodendo, Marcos enfiando seu pinto em mim e eu, eu abrindo minhas
pernas... gemendo... gostando.
Saltei
da cama e quase caí, corri para o banheiro e olhei para a vadia no espelho.
“Sua puta!” Eu disse e entrei no chuveiro. Abri minhas pernas e deixei a água
cair ali, foi o banho menos erótico que tive desde que havia trocado de corpo.
Eu só queria tirar aquilo de mim, esfreguei sabonete, esfreguei minha mão de
unhas vermelhas. Fiquei um bom tempo ali garantindo que aquela meleca toda
saísse de mim.
Voltei
para o quarto e encontrei um bilhete no criado mudo.
Bom dia,
Tive que ir trabalhar, não quis
te acordar. Pedi para Maria preparar um café reforçado pra você. Passo em casa
para te pegar e irmos ao aeroporto. Não sei bem o que dizer dessa situação
estranha. Primeiro desculpe, estava muito bêbado, estávamos muito bêbado. Minha
intenção nunca foi desrespeitar você de nenhuma maneira, mas a verdade é que
(sei que você vai me odiar por isso) eu tive uma excelente noite, valeu toda
dor de cabeça que estou sentindo agora.
Tenho só uma coisa chata para te
pedir. Como falei, estávamos bêbados e, você sabe, não usamos proteção. Silvia
toma pílulas, não sei se você manteve o hábito. Se não manteve, eu deixei uma
receita dentro da gaveta para pílula do dia seguinte. Desculpe estar falando
disso, mas acho que é importante. Ela deve ser tomada em até 72 horas, temos
tempo.
Um Beijo,
Marcos
PS: Não fique bravo ou estranho
comigo, se você quiser a gente finge que nada aconteceu.
Eu
não sei como não desmaiei ali mesmo. Eu suava frio, eu fiquei uns dez minutos
no mínimo com aquele papel na mão. Pílula do dia seguinte? Eu era um homem, um
macho, um cara! E não devia ter que me preocupar com pílula anticoncepcional.
Por que o desgraçado não usou camisinha? Droga! Por que eu não pedi pela
camisinha? Porra! Por que eu fui dar pra ele?
Excelente
noite? Um beijo? Ele acha que eu sou a mulherzinha dele agora? Não fique
estranho comigo? Que filho da puta, ele me comeu... Ele gozou dentro de mim, me
deixou todo melado... e também me fez gozar, um orgasmo enorme... e o jeito que
ele me pegava... Eu balancei a cabeça afastando os pensamentos estranhos. Só
tinha uma palavra boa naquele bilhete. Aeroporto. Tudo ia acabar, eu ia voltar
a ser homem e tentar esquecer tudo isso. Ah como eu iria transar com Ana, com o
meu pinto! Com o meu pinto entrando e saindo de alguém!
Vesti
a droga de uma calcinha, um sutiã, o jeans justo, uma camiseta roxa e as
sapatilhas que eram confortáveis. Encontrei Maria na cozinha com o meu café
pronto. Comi pouco, mesmo após o banho, a ressaca ainda tomava conta de mim.
Ela me tratou friamente, o que não me incomodou nenhum pouco, já que eu estava
de ressaca e extremamente mau humorado.
Peguei
minha bolsa, as chaves do carro, a receita médica e saí para procurar uma
farmácia ainda não acreditando que eu estava em busca de uma pílula do dia
seguinte para não engravidar. Porque, afinal de contas, na noite anterior, eu
estava bêbado, dei para um cara e como fomos levados pela paixão do momento,
não usamos camisinha e ele despejou a sementinha dele dentro de mim. Que lindo!
Parei
na primeira farmácia que vi, desci do carro já envergonhado. Parei no balcão e
dei a receita para a atendente, tenho certeza que ela abriu um sorrizinho
sacana. Pensando: “Essa aí é uma vadia...”
Paguei
pela maldita pílula e voltei pra casa desconsolado. Tomei o humilhante remédio
e me tranquei no quarto.
Acordei
com batidas na porta e um chamado para o almoço. Era Maria e sim, eu ainda era
Silvia e ainda podia estar grávida. Pelo menos a ressaca havia dado uma trégua.
Comi em silêncio e tomei litros de suco de laranja.
Passei
o resto do dia zapeando a TV, sem prestar atenção direito em nada, eu não
conseguia me distrair. Tudo bem, eu estava no corpo de uma mulher, eu tinha
desejos heterossexuais de uma mulher, mas até aí pra descambar numa transa com
outro cara, é demais. Pior que isso, tinha sido bom, tinha sido melhor que
quando fiz sexo lésbico com a minha esposa. Meu deus, o que eu vou dizer pra
Marília: “Oi amor, lembra que você deu pro meu corpo com uma mulher dentro,
então, eu me vinguei, eu dei dentro do corpo dela também e foi uma delícia.
Você me perdoa né?”
Nada,
eu não poderia dizer nada e tinha que fazer Marcos prometer o mesmo. Por falar
nele, ele chegou perto das sete da noite. Entrou no quarto de mansinho, a
porcaria do frio no estomago voltou como um coice de cavalo.
“Oi...”
Ele disse meio sorrindo.
“Oi...”
Eu disse sem coragem de olhar pra ele.
“Você...
você leu o bilhete... você...”
“Sim,
tomei aquela porcaria... e sim eu quero que a gente finja que nada aconteceu.
Isso tem que ficar apenas entre nós... por favor...”
“Tudo
bem.” Ele disse seguro. “Sem problemas, não falarei mais sobre o assunto.
Aliás, você ta pronta? Temos que ir logo pro aeroporto resolver tudo isso.”
Me
levantei, eu não tinha tirado a roupa que fui para a farmácia ainda. A camiseta
estava meio amarrotada, troquei por outra e coloquei um cardigan amarelo claro
por cima.
O
caminho até o aeroporto foi constrangedoramente silencioso. Ele estava
relativamente vazio e o vôo delas tinha acabado de pousar. Esperamos por muito
tempo e nada delas saírem, meu estômago se embrulhava mais a cada minuto que
passava.
De
repente, Marília aparece andando lentamente. O rosto dela estava cheio de
lágrimas, vermelho e ela mal conseguia tirar o olhar do chão. Corri até ela.
“O
que aconteceu? O que foi? Você ta bem?” Perguntei segurando em seus braços com
delicadeza. Ela se jogou em um abraço pra cima de mim, eu a abracei. Ela
chorava e na minha cabeça eu só me perguntava. Cadê o meu corpo?
“Ele...
ela... fugiu...” Ela disse entre soluços, bem perto do meu ouvido.
“Como
assim fugiu?” Eu disse me afastando do abraço.
“Ela,
sei lá, me drogou, eu só acordei aqui em São Paulo, mas ela não tava no
avião,procurei, fiquei esperando todo mundo sair e fui pedir ajuda para a
aeromoça, então ela me disse, que ela tinha descido na parada da escala.”
Eu
fiquei em choque. “Não acredito!” Marcos disse nervoso, colocando as mãos na
cabeça.
“A
gente tem que ir atrás dela... Onde foi a escala?” Ele continuou meio
desesperado.
“Foi
em Salvador...” Marília disse e eu nem conseguia mais falar, então o celular de
Marcos tocou, ele atendeu rapidamente.
Marília
olhou indagando se era quem a gente queria que fosse, eu nem desviei o olhar.
Ele confirmou com a cabeça, Marília se adiantou pra cima dele, ele fez um sinal
com a mão para ela esperar.
Toda
a cena passava como vultos nos cantos dos meus olhos, Marcos gesticulando e gritando
no telefone e Marília apreensiva com as mãos unidas no peito se afastando e se
aproximando de Marcos.
Quando
tudo acabou eles vieram até mim, eles me chacoalhavam e falavam comigo. Tudo
estava nublado e as vozes eram distantes e distorcidas, eles me arrastaram para
um banco e me sentaram. Marília acariciava meus cabelos e segurava minhas mãos.
Marcos correu atrás de um copo de água e Marília me fez beber.
“O
que ela disse?” Eu perguntei depois de um gole. Eles me encararam com pena no
olhar. Eu repeti a pergunta. “O que ela disse?”
“Ela
disse que não vai voltar, disse que não quer voltar pra esse corpo. Ela
realmente fugiu.” Marcos disse pesadamente.
“Mas
a gente vai atrás dela, a gente tem que...” Marília disse tentando me animar.
“Sim,
claro, agora mesmo e também vou atrás do tal do feiticeiro, quem sabe ele tem
outra coisa... Vamos dar um jeito nisso...” Marcos disse seguramente.
Eu
só concordei com a cabeça, mas o desânimo era soberano. Eu esperei tanto por
aquilo, para voltar a ser eu mesmo e agora isso. Ela rouba o meu corpo. A
desgraçada roubou meu corpo.
Marcos
nos levou pra casa, não a casa do meu corpo, a minha casa mesmo. Ele queria
parar na casa dele para pegarmos roupas, eu neguei. Não queria mais ficar
brincando de ser mulher.
Cheguei
em casa e fui direto pro quarto. Marcos e Marília ficaram ainda na sala,
planejando. Ele foi embora coma promessa de achá-la e de ir atrás do tal Zé
Miranda.
Eu
tirei toda aquela roupa feminina e coloquei uma cueca boxer que ficou enorme,
mas eu nem liguei e uma camiseta cujo comprimento das mangas chegavam nos meus
cotovelos e ela ainda cobria toda a cueca folgada. Deitei na cama odiando
aquele maldito corpo, odiando tudo.
Fiquei
na cama por três dias seguidos, apesar das tentativas de Marília de me animar,
eu estava entregue. Mal comia e me levantava apenas para ir ao banheiro,
sentado, sentido o liquido sair pela minha maldita vagina.
No
quarto dia, Marcos ligou e pediu para nos visitar. Marília me obrigou a tomar
banho e eu vesti uma de suas calças de moleton e uma enorme camiseta. Quando
Marcos chegou eu quase voltei imediatamente para cama, pois a coisa no estômago
ainda estava lá, o desgraçado ainda mexia comigo.
Ele
contou que havia encontrado o Zé Miranda e ele realmente afirmou que a estatueta
era mágica e que apenas ela desfaria a troca. Precisávamos achar Marília de
qualquer jeito, ela tinha meu corpo e a estatueta. Marcos prometeu que estava
cuidando disso e me desconcertou com um olhar carinhoso quando se despediu.
Eu
me odiei ainda mais e voltei para o meu casulo de depressão. Marília insistia,
tentava me tirar do meu estado, mas eu apenas a maltratava. Em um desses dias
veio minha primeira menstruação. Acordei um dia com uma dor diferente no
estômago, meus seios pareciam ainda maiores. Resmunguei para Marília e não foi
difícil interpretar.
A
primeira vez que fui no banheiro naquele dia, a prova apareceu. Lá estava eu...
menstruando. Pelo menos, isso significava que eu não estava grávido. Mas esse
foi o único lado positivo. Eu fiquei ainda mais mau humorado, tanto pelos
hormônios, quando pela humilhação que eu sentia de ter que passar por algo tão
feminino, usar absorvente higiênico foi a gota de água pra mim. Em um acesso de
fúria, tirei pelo menos um pouco da minha feminilidade, destrocei meus longos
cabelos com uma tesoura sem ponta.
Quando
mais de uma semana se passou, eu estava com o cabelo bem curto, Marília havia
ajeitado ele pra mim, e praticamente desnutrido. Em uma de minhas levantadas
para ir ao banheiro, desmaiei. Marília me levou para o hospital, onde passei um
bom tempo tomando soro. Os médicos me tratavam como se eu fosse uma anoréxica
maluca e me recomendaram psiquiatras.
Quando
voltamos do hospital, o mundo desmoronou de vez. Tinha uma entrega na portaria.
Uma carta de Silvia, pedindo desculpas, mas dizendo pra gente não ir atrás
dela. Junto com a carta, uma caixa com a estatueta em pedaços.
Eu
seria mulher para o resto da vida, eu seria Silvia pelo resto da vida.
Marcos
apareceu naquele dia, também havia recebido notícias de Silvia, eu não quis
vê-lo. Mas ele havia trazido documentos e toda vida burocrática de Silvia.
Minha vida burocrática, meus documentos.
Daí pra frente, foi só descida. Pensei
várias vezes em me suicidar, mas de alguma maneira, nunca cheguei nem a tentar
o ato. Acho que não fazia parte da minha personalidade. Mas minha relação com
Marília, essa sim eu estava conseguindo matar, eu a afastava a cada dia.
A
verdade é que mesmo que eu não buscasse o ato em si, eu me matava lentamente.
Não me alimentava e não vivia. Passava dias apenas deitado. Foi quando, um dia,
Marília furiosa, me puxou da cama. Eu era menor que ela e sem comer então, foi
fácil para ela me arrastar pro meu atelier. Ela me jogou lá dentro e me
trancou.
Foi
como ela salvou minha vida. Eu comecei a pintar como se estivesse em transe, eu
chorava, eu gritava, eu quebrava coisas. Mas eu pintava, eu estava vivendo
novamente.