Dois
meses depois, eu não havia colocado o rosto para fora de casa. Mas havia virado
o rei do delivery, tinha conseguido engordar o corpo de Silvia e tinha quadros
suficientes para encher uma galeria.
E
foi o que aconteceu, devido aos contatos de Marília, a primeira galeria que viu
as fotos se interessou e pela primeira vez em muito tempo eu senti algo que
chegava perto da felicidade.
O
novo sentimento foi tão inusitado que até topei participar do que ela chamou de
‘dia de princesa’ no dia da minha vernissage.
“Acorda,
vamos, você prometeu que se você expusesse, você iria se arrumar para a
vernissage...”
Abri
os olhos e vi que ainda eram nove da manhã. “Marília, o evento começa só as
sete da noite, me deixa dormir mais vai.”
“Não,
não... a gente tem que comprar roupas, tem salão de beleza marcado,
cabelereiro.”
Naquele
momento eu quase me arrependi de toda a promessa, mas a verdade é que todo
aquele tempo pintando havia me feito aceitar mais as coisas. Eu seria mulher
para o resto da vida. Não é que eu iria voltar a usar as mini roupas de Silvia,
mas eu teria que me acostumar a ser do sexo feminino. A exposição marcaria o
nascimento de outra pessoa, eu não era mais a antiga Silvia e eu não era mais o
Alan. Eu estava renascendo na pele de uma mulher baixinha começando a ficar
meio gordinha.
Não
é que eu estivesse com barriga, minha cintura estava sim definitivamente mais
larga, com pneuzinhos começando a ficar salientes, minha circunferência tinha mesmo aumentado e meus peitos também pareciam maiores. Agora, minha bunda, essa sim me
assustou quando prestei atenção nela de novo. Estava enorme, assim como minhas
coxas. Realmente a gordura da mulher vai para lugares diferentes. Eu acho que
eu parecia uma coxinha peituda, mas como eu não estava nenhum pouco interessado
em ser a gostosa do pedaço, nem me incomodei.
Fazia
muito tempo que eu não me vestia de mulher, então foi meio estranho voltar a
colocar calcinha e sutiã.
Marilia
tinha tirado minhas novas medidas durante a semana e acabou me comprando
algumas roupas.
Acabei
vestindo uma calça jeans maior do que as da verdadeira Silvia, já que agora eu
tinha aquela enorme bunda pra lidar. Uma camiseta básica bem larga e um ténis
preto completavam meu novo look. Eu não era mais a loira gostosona e sexy que
Silvia era. Eu estava mais pra uma pequena e redonda sapatona bunduda. Não
achei tão ruim, pelo menos tinha um pouco de masculinidade.
Eu
não estava extremamente animado com o tal dia de princesa, mas eu havia
prometido que não reclamaria de nada pra Marilia, e afinal de contas, ela teve
que ser uma santa por todos esses meses. Eu devia isso a ela.
Começamos
o dia no salão de beleza onde passei por alguns processos doloridos e um tanto
humilhantes. Começaram arrancando pelos da minha sobrancelha, enquanto mexiam
nos meus pés e mãos. Lixas, alicates e esmaltes eram as ferramentas. Também
passaram uma série de coisas no meu rosto e me deixaram com uma máscara
melequenta na cara por bons minutos.
Depois
foi a vez do cabelo, aceitei ter um estilo mais feminino, mas sem abrir mão de
ser curto. Quando já íamos começar o corte o afetado cabeleireiro perguntou se
eu não desejaria pintar. Então tomei uma decisão ainda mais radical. Resolvi
virar morena. Marília adorou a ideia e apesar do processo ter sido extremamente
chato, quando me vi de novo, após a tintura, após o corte, após secadores,
mousses e penteados. Eu adorei, e eu sabia bem o por quê, eu estava cada vez
mais diferente da Silvia. Tudo bem, minhas unhas do pé e da mão estavam
pintadas de um vermelho queimado bem escuro, eu estava usando calcinha e meus
seios estavam presos dentro de um sutiã. Só que eu já estava mais gordinha, meu
rosto estava mais cheinhinho, eu usava roupas bem mais conservadoras
e básicas e tinha cabelos curtos morenos. Eu não era mais Silvia.
Quando
acabaram comigo, já estava na hora do almoço. Nos sentamos para comer e eu pedi
o maior hambúrguer da casa, apesar das tentativas de bronca de Marília. Eu não
estava nem ligando, ser atraente para alguém, definitivamente, não estava nos
meus planos.
Acho
que quem nos via ali, devia achar que éramos um casal de lésbicas, porque após
tanto tempo de frieza e agressividade, aquele dia eu estava mais aberto a
receber e dar carinho e não é que nos beijávamos loucamente, mas nossas mãos
estavam voltando a se tocar e nossos olhares ficavam mais ternos.
Foram
muitas lojas e muitas discussões. Eu não queria abrir mão de usar calças e
Marília queria me enfiar num vestido e saltos alto. Do vestido eu não escapei,
acabamos concordando em um preto básico, de manga curta, sem decote, que
chegava em meus joelhos e não era justo. Os sapatos foram de salto baixo e
grosso, pretos. Para completar o look, ignorando minhas reclamações, meia calça
preta, uma pulseira um pouco mais grossa do que eu gostaria, um colar fininho e
pequenos brincos, tudo prata.
Fora
isso acabamos comprando algumas roupas para compor meu guarda roupa que não
fossem velhas calças de moleton e camisetas folgadas. Marília estava encarando
aquilo como um vernissage não apenas da minha arte, mas da minha nova persona.
Chegamos
em casa perto do fim da tarde, eu estava exausto, mas o dia mal havia começado pra
mim. Tomei banho, já bem mais acostumado com o meu corpo feminino, dessa
vez com extremo cuidado não molhar meu novo cabelo. Marília disse que seria
difícil repetir o que o cabeleireiro havia feito.
Saí
do banho e comemos alguma coisa leve para enganar o estômago, sabíamos que a
janta mesmo só viria bem mais tarde.
Na
hora de me vestir, Marília mais uma vez me ajudou, ela havia comprado um
conjunto de lingerie preta que eu coloquei primeiro, depois ela me ajudou com a
meia calça, algo que nem fingindo ser Silvia eu havia usado. Depois o vestido e
as jóias. Quando eu achei que estava pronto, ela me mandou sentar na
penteadeira dela, dei uma resmungada, mas ela prometeu não exagerar. Acabei com
um pouco de sombra, rimel, lápis nos olhos, um pouco de blush e batom. Tudo em
tons discretos. Preciso confessar que realmente havia ficado bom.
Quando
me olhei pronto no espelho, eu fiquei satisfeito. Eu não era mais Alan, eu não
era mais homem. Eu sabia. Eu era sim do sexo feminino, mas eu também não era mais Silvia, eu
era uma mulher nova, uma mulher bonita, começando a passar do peso, mas
definitivamente bonita e prestes a expor numa galeria de arte. Eu me sentia bem
novamente, depois de tanto tempo.
Chegamos
mais cedo e ficamos esperando um pouco os convidados chegarem, e conforme eles
chegavam eu tinha que relembrar como ter tratos sociais depois de tanto tempo
recluso. Pior que isso, eu tinha que me portar como uma mulher, dessa vez não
como Silvia, mas como eu mesma. Uma nova mulher.
Eu
acho que estava me saindo muito bem, recebendo muitos elogios pelo trabalho, o que fazia tudo ficar mais fácil, e até me
divertia com as conversas. Até que eu vejo ele entrar, meu estômago acho que
me avisou antes mesmo dos meus olhos captarem direito. A mesma maldita
sensação, o friozinho, a apreensão. Era Marcos que entrava, sorrindo aquele
maldito sorriso.
Subitamente,
comecei a me sentir gordo, odiei o tamanho da minha bunda. Eu queria me
esconder. Eu não queria vê-lo, eu queria ter comido melhor, eu não queria estar
gordinha e bunduda. Eu me odiei por me sentir daquele jeito, mas eu me sentia.
O que ele tinha que mexia tanto comigo? Por que ele me fazia me sentir uma
garotinha de colegial apaixonadinha?
Vi
ele parando para conversar com Marília. A conversa da qual eu estava
participando havia virado murmúrios distantes. Vi minha esposa apontar em minha
direção e ele veio se aproximando. Meu coração acelerava.
“Olá...”
Ele disse com aquele olhar que pra não fugir do comum me derreteu.
“Oi...”
Eu disse timidamente, mas tentando manter a compostura. Percebi até que institivamente eu dava uma encolhida na barriga.
Ele
se inclinou para me cumprimentar com um beijo no rosto, eu estendi minha mão,
depois voltei, ele também. Daí eu me inclinei para aceitar o beijo, ele já
havia retornado e quando ele voltou eu havia baixado a cabeça constrangido e
quando levante bati em seu queixo. Enfim, tivemos um daqueles horrorosos
momentos extremamente constrangedores onde duas pessoas não sabem o que fazer.
Ele
riu, me segurou pelos ombros e finalmente, nossos rostos se tocaram. Eu senti a
mesma queimação de antes e meu coração quase pulou pela boca.
“Parabéns,
ainda não vi com calma, mas seu trabalho parece incrível...” Ele disse.
“Obrigada.”
Eu disse sorrindo bobamente, eu me envergonhava tanto de ficar tão feliz porque
ele havia gostado dos meus quadros.
“Você
ta diferente... o cabelo...”
E
gorda e horrorosa e bunduda. Eram os pensamentos femininos que rodavam minha
cabeça aquela hora. Eu queria chorar ou me esconder. Mas respirei fundo e
disse: “Pois é... eu resolvi mudar um pouco. E bom, to virando uma bolinha...”
Tentei fazer piada da situação.
“Pois
pra mim você continua... ou melhor, está ainda mais linda...” Ele me cantou, o
desgraçado estava me cantando de novo.
“Marcos...”
Eu o adverti. “Eu gostei que você veio, de verdade... mas não. Isso não está
certo.”
“Eu
vim pra te ver, eu precisava falar com você.” O olhar dele me fuzilava e me
enchia de arrepios.
“Pode
falar...” Eu disse meio sem respiração.
“Aqui
não...”
“Marcos,
eu não posso sair daqui, é meu vernissage... e além do mais... eu não sou...
você sabe, eu não sou ela.”
“Eu
sei bem disso, vamos fazer assim, a gente vai até aquele último quadro ali e
você finge que está me explicando e eu falo o que tenho que falar e vou embora,
pode ser?”
“Marcos...”
“Cinco
minutos e eu vou embora.”
Eu
respirei fundo e soltei um suspiro de vencido. Andamos até a frente do quadro.
Um que tinha um fundo rosa e um monte de respingos pretos que formavam
grafismos interessantes.
Ele
começou imediatamente. “Eu não consigo tirar você da cabeça, eu não parei de
pensar em você um minuto durante todos esses meses... Eu... Eu to apaixonado
por você... eu lutei contra, acredite... mas...”
Meu
coração quase explodia, eu suava, mas falei o mais sobriamente que consegui.
“Você ta enganado Marcos, você ama a Silvia, eu não sou ela, sei que deve ser
difícil, eu sei mesmo... Mas eu não sou ela...”
“Eu
disse que sei bem disso, eu não amo a Silvia, eu amo essa mulher nova que
entrou na minha vida naquela semana...” Ele puxou meu ombros e me fez encará-lo, eu
acho que quase desmaiei. “Eu amo você...” Ele disse e, infelizmente, eu juro
que eu queria que ele tivesse me beijado ali mesmo, a força... mas o que eu fiz
foi me desvencilhar dele e dizer. “Seus cinco minutos acabaram...”
Saí andando com minhas pernas completamente bambas, eu mal conseguia
respirar e algumas lágrimas caíram dos meus olhos. Fui diretamente ao banheiro
e tentei me recompor. Quando voltei ele não estava mais lá.
Passei
o resto da vernissage me entupindo de pro-seco e quando fui jantar com Marília
eu já estava bem bêbado. Ela achou que era euforia pelo sucesso, mas a verdade
é que eu não conseguia parar de pensar no Marcos, o álcool parecia ser minha
melhor saída.
Durante
o jantar ela chegou a dizer que tinha achado legal ele ter ido, eu disfarcei,
mas só a menção do nome dele me dava calafrios.
Marília
também acabou me acompanhando nos drinks e chegamos em casa cambaleando. Ela me
atacou como havia me atacado na viagem. Suas mãos suaves tocando minha pele,
seus beijinhos sutis e leves. Ela me colocou na cama com delicadeza e
delicadamente me acariciou. Eu tentei entrar no clima, mas mesmo bêbado, eu não
conseguia. Tudo parecia xoxo e sem graça, eu sentia falta de mãos maiores de
beijos mais seguros. Eu sentia falta de Marcos. O desgraçado havia me acostumado
mal, eu queria mais que aquilo.
Marília
se esforçava, tirou minha meia calça, minha calcinha. Ela me lambia, me apertava. Eu não sentia quase nada.
Aquilo me deixava com raiva de mim mesmo, envergonhado. Ela percebeu.
“Você...
você não ta no clima?” Ela perguntou meio aflita.
Eu
balancei a cabeça positivamente e não agüentei, comecei a chorar. Ela me
abraçou.
“Não
tem problema...” Ela me acariciava e eu não sentia nada perto de tesão e
chorava mais.
“Shhhh...”
Ela tentava me acalmar. “Calma, não tem problema...”
Dormimos
naquela dinâmica, dela me acariciando e eu chorando. Ambos sabendo que tinha
problema sim, que nosso casamento tinha acabado, que tínhamos virado... amigas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário